Apartheid urbano
As superquadras do Plano Piloto em meio a verdadeiros parques
Brasília foi criada no âmbito de um surto
desenvolvimentista do país, nos anos 1950, e seguiu no seu projeto,
aprovado em concurso internacional, as melhores especificações para
o estabelecimento de uma nova maneira de viver, integrada à natureza
e de acordo com a civilização do automóvel que se estabelecia
sobre nosso planeta.
Embora não tenha até hoje sido completado, o projeto
das superquadras, que deveriam se agrupar de oito em oito em Unidades
de Vizinhança (nunca implantadas), com escolas fundamentais e
infantis em cada uma delas, integradas à uma Escola Parque e
à um clube em cada Unidade de Vizinhança, deveriam mesclar a
modernidade e autonomia das unidades habitacionais, com a integração
de seus moradores, promovendo o convívio harmônico através da
educação e do lazer coletivo, e saudável, através do estímulo à
prática de esportes.
Nada disso foi implantado, por temerem as elites da
época que se tratasse de um projeto socialista, deixando os
edifícios isolados nas superquadras, e dentro deles a solidão dos
seus habitantes.
Mais grave ainda foi a implantação das chamadas
cidades satélites do novo Distrito Federal, construídas para
abrigar os pobres, quando o Plano Piloto, a parte projetada por Lúcio
Costa, ainda estava no seu início, cheio de quadras vazias que
podiam abrigar os trabalhadores.
Mas, uma vez mais as velhas elites entenderam que a
cidade projetada para ser uma vitrine do novo Brasil que surgia, não
devia ser enfeiada com a pobreza em que viviam os trabalhadores e que
o melhor era escondê-los dos olhos do mundo em outras “cidades”,
bem distantes do explendor arquitetônico das obras esculturais de
Oscar Niemeyer.
Estas cidades passaram a ser chamadas cidades
satélites, pois orbitavam em torno ao Plano Piloto
(considerado até hoje como a verdadeira Brasília), como o sputnik,
primeiro satélite artificial lançado ao espaço pelos russos em
1957, orbitava em volta da Terra.
Muitas surgiram desde então. As primeiras foram o Gama,
assentamento criado a partir do projeto hexagonal de MM Roberto, que
participou do concurso internacional para a escolha do Plano Piloto
(vencido por Lúcio Costa), localizado na antiga fazenda do Gama,
cuja sede ainda existe, preservada pelo patrimônio Histórico.
O projeto de MMM Roberto para Brasília previa 7 hexágonos.
Um deles foi implantado para formar a cidade satélite do Gama
Na
mesma época surgiu Taguatinga, na saída sul da
cidade, Sobradinho, na saída norte, também construída
na fazenda de mesmo nome, e Planaltina, antiga cidade
colonial e sede de município que ficou dentro do quadrilátero do
novo Distrito Federal. Parte do seu antigo território, porém, ficou
fora do novo DF constituindo o município agora denominado Planaltina
de Goiás.
Av. Comercial de Taguatinga em 1958
Av. Comercial de Taguatinga atualmente
Logo após a transferência oficial da Capital da
Republica para Brasília, em 21 de abril de 1960, o projeto de um
deputado federal transformou o antigo acampamento de obras denominado
Cidade Livre, em mais uma cidade satélite. A
antiga Cidade livre foi riscada no chão pelo engenheiro Bernardo
Sayão, na época chefe da NOVACAP, a Companhia Construtora da Nova
Capital, estatal criada para construir Brasília. Eram apenas três
ruas onde qualquer um podia chegar e construir, sem nenhuma licença
ou projeto, de forma a facilitar o assentamento de trabalhadores que
chegavam (os “candangos”) e as empresas que quisessem prestar
serviços no local. A ideia era que após a inauguração da capital
tudo fosse removido mas, por pressão dos comerciantes estabelecidos
no local, a Câmara Federal aprovou um projeto fixando
definitivamente o assentamento com o nome de Núcleo
Bandeirante.
A Cidade Livre nos seus primórdios
Os barracos de madeira foram obrigados, então, a serem
desmontados e reconstruídos dentro de lotes demarcados ao longo das
três ruas, agora denominadas de Primeira Avenida, Segunda
Avenida e Avenida Central, nomes que permanecem até hoje.
Essa reconstrução dos barracos seguiu uma rígida tipologia imposta
pela Novacap, com modelos de dois pavimentos, para as lojas
comerciais e térreos para as residências, semelhantes aos
utilizados na Avenida W3 sul, no Plano Piloto.
Os que não quiseram permanecer no local ganharam lotes
na W3 Norte, que acabava de ser asfaltada, utilizando a mesma
tipologia arquitetônica.
Em seguida, já durante o regime militar, foram criadas
as cidades satélites do Guará, grande conjunto
habitacional construído pelo recém-criado Banco Nacional de
habitação, o BNH, situado às margens da estrada que liga o Plano
Piloto à Taguatinga, e a Ceilândia, cidade criada
pela CEI, Comissão de Erradicação de Invasões
especificamente para erradicar a famosa Invasão do IAPI e sua
vizinha, apelidada de Morro do Urubu, situadas em frente ao
novo Núcleo Bandeirante.
Posteriormente nos três governos de Joaquim Roriz, já
nas décadas de 1980 e 90, foram criadas as cidades de Samambaia,
vizinha à Taguatinga e Ceilandia, formando um
gigantesco núcleo habitacional, e Recanto das
Emas, entre a BR-40, saída para Goiânia e o Gama. Na
verdade o governador Roriz (nomeado por José Sarney quando ainda não
havia eleições diretas para governador do DF) usou a possibilidade
de dispor de terras públicas do DF para distribuir lotes a migrantes
de regiões circunvizinhas que ele estimulava a virem para Brasília,
formando imensos currais eleitorais que o ajudaram a se eleger mais
duas vezes governador após a nova Constituição de 1988.
Depois disso várias outras cidades ainda foram
criadas, como o Paranoá, a partir de uma invasão
existente no local, resultante de um antigo acampamento de obras e
“regularizada” pelo GDF através de um novo projeto urbanístico.
Muitos outros antigos acampamentos de construtoras, da época da
Construção da capital, permaneceram ocupados e foram posteriormente
regularizadas, como a Vila Planalto, próxima ao
Palácio do Planalto, a Metropolitana e a
Candangolândia, ambas próximas ao Núcleo
Bandeirante, a Vila Telebrasília, às margens do lago
paranoá, e outras, todas seguindo traçados urbanos projetados pelo
GDF.
Núcleo bandeirante hoje:
Prédios colados com iluminação/ventilação feita através de poços
Essa profusão de pequenos assentamentos urbanos, no
entanto, tem em comum um Código de Obras muito diferente do código
do Plano Piloto, permitindo que um compartimento de permanência
prolongada, como uma sala de estar, por exemplo, possa se abrir para
um poço de ventilação de apenas 80 x 80 cm, formando
aglomerações extremamente insalubres.
Cozinha abrindo para poço de ventilação
Não bastasse a expulsão dos trabalhadores e a venda
das superquadras para as incorporadoras imobiliárias, elevando o
preço do m2 do Plano Piloto a um dos mais altos do mundo, a
permanência de códigos de obras diferenciados no mesmo espaço
urbano, diferenciando mais ainda trabalhadores de funcionários de
alta renda e parlamentares que habitam a cidade planejada por Lúcio
Costa.
No Plano Piloto ergue-se uma cidade de padrões internacionais, enquanto nas
satélites, o código de obras diferenciado permitiu o surgimento de verdadeiras casbahs, aqueles amontoados de construções,
típicos dos centros históricos das cidades árabes, com ruelas
estreitas e habitações insalubres, num verdadeiro apartheid urbano.
Embora as satélites venham recebendo novos e grandes empreendimentos imobiliários, com padrões muito melhores, não se justifica a permanência de padrões diferenciados dentro da mesma unidade federativa.