Poesia da semana
O POEMA DO ANDARILHO
Para Nélida Pinõn
I
Menor que meu sonho
não posso ser
Mil identidades secretas.
Mil sobras, sombras, mil dias. Todas palavras e tudo. Barco de ambigüidade, sôfregas palavras. De todas contradições, desencontros, dos contrários de mim, andarilho da flecha de várias pontas, direções. Dos outros seres que também andarilham.
Pois menor que meu sonho
não posso ser
Andarilho
de ervas sutis crescidas de noites luzes becos latinos frêmitos Andes ilhas. Andarilho de santos falidos, feridos de vaidade. Dos frutos da segurança vã, vã beleza de repente solidão.
Feitiços, laços, encantamentos.
Prodígios, Tordesilhas, ressentimentos. Andarilho de perder pele, asa e uso, mariposa da lua difusa do amanhecer. Andarilho de paisagens precárias do sentimento guardado a sete chaves, não fotografável, nem desvendável em câmaras escuras, secretas torturas, ou à luz de teus olhos surpresos, presos nos meus olhos, ilhas. Pois menor que meu sonho não posso ser Andarilho. De insignificâncias magníficas colheitas do nada. De tudo que ninguém se lembra nem nunca escreveu. De uma nuvem veloz reflexo de outra nuvem andarilha nuvem do sul de onde vem a luz, andarilho. Crescem em mim as palavras sensações mais estranhas e andarilham. Arrulho de palavra pousada ave sobre um minuto de trégua e milagre do tempo quando o sol se põe atrás do horizonte inquieto do dicionário e da dúvida: armadilha.
na saliva na garganta
na palavra escrita primavera na capa de um caderno antigo do Grupo Escolar Polidoro Santiago de Timbó andarilho de linhas esquecidas tortas velhas trilhas datas de nascimento e burlescos aniversários andarilho andorinha em ziguezague na festa na face de Deus.
Aos trancos e barrancos, andarilho.
De trincos e garimpos, andarilho. Andarilho de desafios, desafinos. De socos recebidos e raros revides, de atonias em atrofias, andarilho.
Andarilho.
Na diferença palpável da volúpia. De assédios, impertinências, ideologias. De recalques, decalques, vídeos, celulóides, fitas gravadas da liberdade, gravatas, contatos, contratos, andarilho.
Pois menor que meu sonho
não posso ser. II
Empoleirado em minha gaiola de ineficiência,
andarilho. Longe de grandes e confortáveis salas da subserviência, andarilho. Transitivo, substantivo, adjetivo. Solto na correnteza do medo, da instabilidade de tudo, na multidão de afetos. Eu, claro enigma: sete palmos de terra, sagrado sopro de todo o sentimento. Eu, quebrado espelho d’água de Narciso e fogo de Orfeu entre a paixão e o definitivo tempo.
Eu estranho a maioria das vezes
na própria terra do poema onde me sedimento, acidento, me desencaminho, me aninho, me enovelo em trama de pouco, em menos, em quase nada e mesmo assim andarilho.
Pois menor que meu sonho
não posso ser
eu matéria recalcitrante do futuro.
Eu a nação inteira sob o impacto do sonho. Eu dissecando a morte sobre a mesa da manhã. Eu onipresente e diluído na dor geral.
III
Fechei meu expediente da comoção fácil.
Corretores da insegurança: deixai a sala de frente da precariedade.
Atravesso jejuns, desdéns,
indecisões, hospedarias do tempo. A luz acesa de hotéis bordéis pobres e mal cheirosos suicídios alheios pleonasmos.
Atravesso anúncios
e antenas. Os homens apressados do século XX e sua matéria veloz de sobrevivência atravesso. A rua que antes atravessei atravesso outra vez e a praça onde contornei a liberdade da palavra e da liberdade. volto a atravessar.
Pois menor que meu sonho
não posso ser
Atravesso cartazes de cinema
ofertas do dia de supermercados. Estádios de futebol, sirenes que falam de morte inventada em subterrâneos sombrios. Atravesso lianas, liames, hienas, reconciliações, pecados capitais e provincianos ais.
Atravesso manchetes
de maré cheia, crescente de vazantes mares, absurdas frases e as mais absurdas caligrafias, atravesso sentidos sem sentido nenhum, de repente, onde me decifro e hieróglifo.
Vácuos, opalas, opalinas, vícios.
Mesuras, curvaturas, arbítrios, alienações. Tudo atravesso. Atravesso a casa dos ventos uivantes. O assombro, a censura, a navalha na carne.
Atravesso o crime perfeito, utopias,
as profecias todas do país das falas guaranis, guaranás.
Pois menor que meu sonho
não posso ser
IV
Não afino com instrumento
que se toca à distância Não proponho propostas de diluição Não sou agente do vazio nem de asas que o homem não tem
Se acreditais em sistemas de elocubração
Na gema brilhante do nada Em recheio de palavras e sofisticados relatórios Se acreditais em clara batida nas panelas obscuras da prepotência Se quereis teorias de mim Se me quereis longe da paixão: tirai o cavalo da chuva
Pois menor que meu sonho
não posso ser.
V
Passa o tempo.
Como passa, passou o tempo. oh! frase feita, inútil consolo e alívio.
Passo este tempo que me passa.
Passo pontos de interrogação, helespontos, helespantos. Passo a ponte, o poente. Deliberadamente passo mas sem pressa, passo a passo. Passo os fusos horários e passeio entre o sonho e as palavras.
Também entre as obscenas por decreto.
Pois menor que meu sonho
não posso ser.
VI
Atravesso compêndios, currículos, apostilas
de silêncio e minha sombra pisada por outra sombra também feita de tudo e nada Atravesso simulacros e arranco o lacre da palavra
Pois menor que meu sonho
não posso ser
atravesso o avesso
E meu barco de travessias é a palavra terra cercada de água por todos os lados
Pois menor que meu sonho
não posso ser
Estou do lado de lá da ilha
Aqui disponho de mim e conheço meu próprio acesso Aqui conheço a face inversa da luz onde me extravio e não cessarei jamais
Pois menor que meu sonho
não posso ser.
Lindolf Bell
Sobre o autor
É a partir de Lindolf Bell
que a poesia catarinense recupera o teor de originalidade, legado por Cruz e
Souza, e passa a sugerir algo novo. Não dita normas para o fazer literário, não
restringe o campo de ação do poeta. Mas amplia, posto que, opondo-se a algumas
teorias estéticas das vanguardas de 50 e 60, pressupõe a permanência do vínculo
entre o poeta e o seu poema. Exigindo do poeta a divulgação direta com o
público, tornando-se um intermediário vivo entre o poema e o seu consumidor, a
poesia realimenta-se de suas atribuições originais de laudos e desempenho
social.
Sendo essa sua orientação básica, a Catequese Poética, liderada
por Lindolf Bell, possibilita a agregação de poetas das mais variadas
tendências, num convívio sem conflitos estéticos.
Daí o uso de
ingredientes que favorecem os efeitos acústicos e o ritmo, como a repetição e a
reiteração. O convite à participação do público não se dá somente ao nível
fônico e visual, mas igualmente, na sugestão contida na matéria
tematizada.
Em Código das Águas afirma-se a trajetória desempenhada pelo
poeta enquanto peregrino em busca da poesia ideal. A palavra, aí, é o
instrumento capaz de apreender a essência do universo criado. O código das águas
reelabora o ideário estético de Lindolf Bell, que tem a ver unicamente com o
fluir irredutível, ininterrupto e inclassificável de sua poesia - águas -
insubmissa a códigos, exceto o das águas, cuja, codificação nega a si mesmo,
exigindo-se a mutabilidade, o dinamismo constante.
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terça-feira, 24 de dezembro de 2013
O Poema do Andarilho
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