Por uma educação rural
Quando trabalhei no Pradime, Programa de Apoio aos Dirigentes Municipais de Educação, do Ministério da Educação, fiquei responsável pela área de recursos materiais. Esse trabalho me levou a realizar uma pesquisa sobre as condições materiais das escolas públicas brasileiras, pesquisa que reproduzi posteriormente no meu livro Escola, Espaço e Discurso.
O surpreendente, no resultado da pesquisa, foi verificar que a causa do suposto "atraso" da educação no nordeste estava no alto índice de habitantes nas áreas rurais.
O nordeste é uma região onde o fenômeno de urbanização (migração rural paras as cidades) ainda não se completou. A Bahia é um exemplo disso, onde aproximadamente 50% da população ainda vive no campo ou em pequenas cidades, num território maior do que a França ou a Alemanha.
Isso é ruim? Bem, do ponto de vista desenvolvimentista, viver no campo é sinônimo de atraso e o bom é ser um cidadão das cidades (desculpem o pleonasmo). Talvez por isso a educação nas áreas rurais brasileiras seja tão ruim, realmente muito ruim, muito pior do que nas escolas públicas urbanas, que já não são nenhuma maravilha.
Isso se reflete nos indicadores gerais da educação brasileira, fazendo com que o nordeste apareça sempre como uma área problemática no campo da educação, embora a educação rural seja ruim em todo território brasileiro, inclusive nas unidades mais ricas da federação, situadas no sul e no sudeste do país,
É claro que nas regiões mais industrializadas, sendo a população rural muito pequena em relação à urbana, esses indicadores se diluem, dando a impressão de uma superioridade regional, quando na verdade o que ocorre é a supremacia incontestável da educação urbana.
O Brasil é um país antigo e, apesar do que digam, de tradições arraigadas. Nossa educação é tributária de raízes muito autoritárias, herança de uma colonização escravista, de uma monarquia escravista, de uma república de fazendeiros que se manteve no poder até 1930 e de duas ditaduras no século XX, a de Vargas, que durou 15 anos e a militar, que durou 21.
Há apenas 29 anos nos livramos dos militares, mas mesmo assim, seus discípulos da direita mais conservadora se conservaram no poder até 2001, há apenas 13 anos atrás, quando o governo social-democrata do PT começou a inverter algumas prioridades no Brasil, ainda sob protestos de uma elite altamente conservadora, habituada a ver a maioria do povo sobreviver na miséria.
É muito pouco tempo. Professores e diretores de escola (ou gestores, no jargão neoliberal), ainda são os mesmos dos tempos da direita, na maior parte do Brasil. Apenas agora uma nova geração de educadores começa a assumir os destinos da educação brasileira, ousando timidamente contestar os fundamentos neoliberais impostos nos governos de Fernando Henrique Cardoso, último expoente da direita a governar, mesmo assim minoritários e confusos, sem um projeto novo de educação voltado para a qualidade social, que liberte o povo da ignorância e da submissão aos grandes capitais e aos políticos, principalmente no interior desse gigantesco Brasil profundo.
E não há área mais sensível à política e à ideologia do que a educação. Não se iludam com os discursos tecnocráticos, que apontam falta de escolas ou de verbas como culpa do atraso educacional do Brasil. Na verdade sobram escolas e verbas e a matrícula no ensino fundamental vem caindo há muitos anos, devido à queda na natalidade.
Nem por isso a educação tem melhorado. E não adianta injetar mais e mais recursos, construir escolas de horário integral, colocar computadores, satélites e todo um aparato tecnológico, enquanto a discussão sobre a educação não entrar no espinhoso terreno da política.
Na verdade o que precisamos é de uma reforma educacional que rompa com os fundamentos conservadores que consideram os pobres uma "classe perigosa", que precisa ser disciplinada, submetida, dominada, para que possa se adequar ao sistema de privilégios que continua vigente na nossa sociedade, se conformando em permanecer pobre para fazer a gigantesca máquina da economia funcionar, enquanto uma minoria se apropria da maior fatia dos benefícios gerados pela produção.
Uma verdadeira reforma educacional deveria inverter esses valores, ensinando aos alunos pobres que esse é um sistema injusto e precisa ser modificado, que eles não precisam se conformar com o destino redutor que lhes é oferecido, mas devem sonhar em ser realmente protagonistas do seu país, virando a economia de cabeça para baixo e acabando com velhos e injustos privilégios.
Mas é aí que entramos no terreno perigoso da política. Uma educação libertadora, que acabe com as filas na entrada da escola, com o militarismo de se perfilar para cantar o hino nacional, com a preponderância da disciplina sobre o conhecimento, abrindo as portas para o desconhecido, para um futuro imprevisível, talvez incontrolável pelas forças que dominam a política, mas certamente transformador no sentido de construir novas estruturas de poder na sociedade.
E uma das providências fundamentais para começar essa transformação é acabar com o mito de que as cidades representam o progresso e as zonas rurais o atraso. Superar as diferenças entre cidade e campo sempre foi uma meta de todas as revoluções mundiais, que construíram as grandes nações modernas de hoje.
Hoje ensino numa escola técnica de uma cidade pequena e sinto muito ao ver alunos dos povoados não conseguirem vir a aula por falta de transporte (apesar de um programa do governo federal nesse sentido), fazendo com que talentos promissores se percam.
Ainda me surpreendo com propostas de pessoas bem intencionadas, principalmente ligadas a igrejas, de montar escolas técnicas para "tirar os pobres da rua", oferecendo cursos como corte e costura e culinária. Francamente, quem consegue crescer com isto hoje em dia? É melhor deixá-los nas ruas. Talvez lá eles aprendam a se revoltar contra esse sistema obsoleto e arcaico de privilégios.
Um sistema nacional (de preferência federal) de educação rural, seria um bom começo para inverter essa lógica perversa, que só ensina o caminho da cidade, onde um destino de submissão aguarda o filho do camponês. O próprio deslocamento diário para a cidade para receber a educação a que tem direito, vai reforçando essa lógica de que é preciso abandonar o campo para crescer, para encontrar oportunidades.
Construir grandes escolas rurais, escolas-pólo, que possam receber alunos de uma determinada região sem grandes deslocamentos, inverteria isso, criando uma base política avançada no campo, que poderia subverter a ordem estabelecida pelos grandes proprietários de terra, de manter a produção sob seu domínio e os agricultores submetidos.
Uma escola transformadora no campo inverteria os indicadores educacionais e a própria lógica da urbanização descontrolada, geradora das favelas e de toda violência que assola nossas grandes cidades.
Quem tem coragem de fazer uma verdadeira revolução na educação brasileira, afrontando velhas e santas humilhações?
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