segunda-feira, 8 de abril de 2013

DESTAQUE

Chico Rei


     Continuando as resenhas de livros compradas no Museu da Inconfidência, em Ouro Preto, falo hoje sobre o livro de Agripa Vasconcelos, que li esta semana.
     Trata-se de um romance histórico, portanto não é historiografia oficial, pesquisa científica, mas um romance que mistura ficção com fatos históricos.
     O livro, editado pela Itatiaia, foi publicado em 1966 e padece de algumas deficiências já apontadas no livro desta mesma editora, sobre a Incofidência Mineira, que comentei na semana passada, especialmente em relação a postura  sobre os negros, tema deste livro.
     Embora favorável aos africanos que vieram escravizados para o Brasil, o enfoque adotado é o de exacerbar seus sofrimentos e a crueldade com que foram tratados, mas reforçando alguns preconceitos, repetidos na obra, como por exemplo, o mito de que os índios não serviram para a escravidão porque eram preguiçosos, ou a maldição que Noé teria lançado sobre um de seus filhos, que teria se estendido a todos os africanos, ou a suposição de que os negros seriam mais adequados  aos serviços pesados porque não conheciam nenhum ofício que não fosse a guerra, a caça e a pesca, afirmação amplamente desmentida pela historiografia que registra um alto desenvolvimento da indústria metalúrgica de cobre, ouro e prata na África, muito antes da chegada de europeus. Também atribui e existência dos santos negros à evangelização européia, desconhecendo que a Etiópia já era um reino cristão muito antes de grande parte da Europa e trata a escravidão como se fosse um fenômeno que se abateu exclusivamente sobre a África, desconhecendo que ela já era praticada desde a antiguidade e mesmo nos séculos anteriores às grandes navegações, era comum entre os europeus e os árabes.
     A primeira parte do livro, na qual o autor pretende contar a história de um Rei do Congo que teria vindo escravizado para trabalhar nas lavras de Minas Gerais, tem muitas incorreções. Para quem se interessar pela verdadeira história do Congo, aconselho o livro A Manilha e o Libambo, de Alberto da Costa e Silva, que dá conta da história da África entre os séculos XV e XVII, no tempo em que os europeus começaram a andar por lá, livro que já resenhei no meu blog anterior (Segunda-feira).
     Oficialmente, Chico Rei é um personagem lendário de Minas Gerais, mas no livro ele é tratado como se fosse fato histórico. Teria sido um rei do Congo que foi escravizado e trazido para Minas onde conseguiu se alforriar, comprar uma mina de ouro e com seus ganhos teria alforriado mais de 400 escravos, inaugurando uma espécie de previdência social, que descontava dos salários pagos aos trabalhadores de sua mina, um percentual destinado a uma caixa para alforriar mais escravos.
     Teria sido ele, com o ouro extraído de sua mina, que mandou construir a igreja de Santa Efigênia, em Ouro Preto, além de inventar a Congada, que seria uma forma dos africanos residentes na colônia homenagearem seu rei exilado, sem ofender os representantes da corte portuguesa, que teriam permitido que ele fosse coroado Rei dos Pretos, na povíncia mineira.

Igreja de Santa Efigênia, em Ouro Preto
     O melhor do livro de Agripa Vasconcelos é a descrição da sociedade da antiga Vila Rica, que ao contrário do que se costuma fazer nos roteiros turísticos, mostra uma sociedade dominada pela corrupção, pela violência extremada (contra os escravos principalmente, mas também contra os colonos brancos sob o governo incompetente e corrupto da corte de D. Maria I) e pelas intrigas. Uma sociedade que vivia exclusivamente do ouro e para o ouro, composta pelos mais diversos tipos de fascínoras que, enriquecendo, compravam títulos de nobreza e fundavam famílias tradicionais, se arrogando direitos de nascença.

          Em todo o continente das Minas, tendo por centro a Serra do Ouro Preto, milhares de  
     escravos feriam a terra em busca ansiosa do metal. Os que armaram ranchos para lá levaram
     as famílias, e nos arredores surgiram choças de palha e folhas,  repletas de gente entregue à
     aventura aurífera. Em todas as catas, escravos trabalhavam sob o relho, com pensamentos de
     perpétua revolta, para sangue ou para a meta dos quilombos. Paulistas, taubateanos, geralistas,
     gringos sem pátria, enxameavam cavando chão na febre de enriquecer. Os forasteiros se
     gabavam da propriedade das minas e os montanheses os viam como intrusos, gente de
     arribação. Odiavam-se, e os negros das lavras tinham justa raiva dos dois. Não havia colonos, e
     os cativos nacionais estavam sujeitos à usura e às derramas da Coroa.
          A moral também era péssima ou não existia nos arraiais nascidos das lavras. A
     licenciosidade atingia as famílias, que ali estavam como gente nobre mas, se se apurasse muito,
     tinham o passado de lheguelhés. Ali estavam os brancos de linhagem histórica nas Minas...
     bandoleiros, esfoladores de bugres e negros, ladrões de estrada. (p. 179).

      Uma das melhores passagens do livro, sem dúvida é o assassinato de uma linda escrava de apenas 16 anos, pela sua patroa, durante um almoço onde estava sendo servida uma leitoa assada. A dona da casa, enciumada por achar que a escrava havia deixado cair uma flor dos seus cabelos, propositalmente, sobre os ombros do seu marido, lhe ataca com o garfo de trinchar a leitoa, matando-a na frente de todos, sem sofrer nenhum castigo ou condenação.
      O ato de crueldade feroz, faz com que o próprio Agripa Vasconcelos expresse no livro não entender como uma população de negros dez vezes maior que a de brancos, se deixou escravizar e maltratar daquela forma, sem maiores motins, a não ser alguns localizados e através da fugas para os quilombos.

 Embora a existência de Chico Rei não seja comprovada pela historiografia mineira, ela está muito presente na tradição oral, o que nos faz pensar que alguma coisa de verdade de haver em torno dela. Até sua mina pode ser visitada em Ouro Preto.
Sem dúvida, se Chico Rei existiu, ele contribuiu para esta passividade. Mas talvez a história não esteja sendo contada por inteiro e outros episódios desconhecidos tenham sido apagados pelos historiadores brancos.
     Está faltando uma pesquisa que lance um olhar mais contemporâneo sobre essa época, que nos liberte desses livros com visões tão antigas, das décadas de 1930 ou 1960.
     Talvez até essas pesquisas existam e eu não tenha tido a oportunidade de conhecê-las, mas, de qualquer forma, não estavam disponíveis no Museu da Incofidência para serem adquiridas.
     O principal significado da figura de Chico Rei no imaginário popular, parece ter sido o de resgatar a dignidade dos africanos, tão humilhados e maltratados na escravidão, mas sem dúvida cumpriu também o papel de apaziguador, fazendo com que os negros "se comportassem bem", aturando toda a violência que era exercida contra eles, em nome de uma pretensa necessidade de demonstrar que eram humanos e sabiam ser caridosos e disciplinados.
     Há um filme, de 1985, sobre o tema, dirigido por Walter Lima Jr.


   
     Também o livro "O Romanceiro da Inconfidência", de Cecília Meireles, trata do assunto, segundo as resenhas que li (não conheço o livro). Sem dúvida é uma história muito interessante, que vale a pena ser conhecida por todos os brasileiros.

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