Os Índios e a Civilização
Acabo de ler este clássico da antropologia brasileira e internacional (editora Companhia das Letras, São Paulo - 7a edição, 1996). Não é um livro fácil, pois trata-se de uma pesquisa científica, mas tampouco é difícil, para quem tem o mínimo de conhecimentos na área das ciências, porque a linguagem de Darcy Ribeiro, ao contrário de muitos pensadores importantes, não gosta de dificuldades e não se dá ares de importância, preferindo sempre a objetividade e a proximidade ao leitor, sem abrir mão de nenhum pré-requisito metodológico.
O difícil na leitura não é a linguagem, mas a realidade imensa e complexa que se descortina com a sua leitura, sobre o universo indígena no Brasil e as imensas dificuldades do processo de assimilação dessas nações pela sociedade nacional.
Coloquei a palavra assimilação propositalmente em destaque, porque o autor não concorda com esse conceito. Ele diz que não existe assimilação nesse caso e constrói outro conceito ao longo do livro, que é o da transfiguração étnica.
Segunda ele, o tipo de sociedade dos indígenas brasileiros é tão diferente da nossa, que seria impossível que uma assimilasse a outra. Diferente não apenas no uso da tecnologia e na organização tribal, mas principalmente na concepção de mundo, e da relação entre homem e natureza, que passa muito mais pelo que nós chamaríamos de metafísica, ou pelo espiritualidade imanente das coisas, se é que consigo me fazer entender.
Portanto, para o índio não há como se integrar nessa gigantesca tribo (a chamada civilização) que invadiu seu território, sem perder sua identidade tribal. Sem falar nos grandes massacres e extinções de tribos inteiras feitas pelo contágio involuntário de doenças para as quais eles não tinham defesas, ou para as matanças planejadas, através da violência pura e simples de bugreiros, com armas de fogo, armas brancas, envenenamento de fontes de água e uso de roupas contaminadas por doenças (como a varíola, por exemplo), tão comuns atré 1910, quando foi criado o SPI (Serviço de Proteção ao Índio), sob a inspiração humanista e positivista de Cândido Rondon, depois transformado na atual FUNAI.
Mesmo com todos os cuidados dos indigenistas em pacificar as tribos, garantir a demarcação de suas terras, enfrentando a pressão de fazendeiros, seringueiros, garimpeiros, etc, que aliás continua até os dias de hoje (o livro foi escrito em 1957), mesmo quando a tribo consegue sobreviver a tudo isso, ela perde a sua personalidade, o que ele chama de ethos tribal, que vai desaparecendo na medida em que ela vai se vendo isolada, cercada dentro de seu território por um mundo de brancos, infinitamente superior a eles, em termos de quantidade e de tecnologia, fazendo com que eles percam o respeito por si mesmo e passem a duvidar da suas convicções originais.
É aí que se daria a transfiguração étnica e o índio deixa de pertencer a uma tribo, uma cultura específica, uma língua, com todo o contexto que a envolve, e passa a ser um índio genérico, sem personalidade, que já não existe mais como entidade original e não consegue tampouco se integrar na sociedade civilizada, restando a ele permanecer isolado e deprimido, dentro da sua reserva ou então se dissolver dentro do povo brasileiro, ingressando sempre nas suas classes mais baixas e exploradas, como mão de obra barata.
É interessante perceber como as tribos são pequenas, diante do nosso conceito de nação. As maiores, no tempo em que ele escreveu, não passavam de 15.000 pessoas e as menores às vezes resumiam-se a pouco mais de 300. E isso não se devia à mortandade, mas à um processo de expansão e divisão das tribos, que quando se tornavam mais populosas do que seu meio ambiente permitia sustentar, se dividiam, como abelhas que enxameiam com a velha rainha, para constituir outros povos, que embora aparentados, guerreavam entre si e iam construindo diferenças culturais para manteram sua diferenciação.
É chocante também perceber o ódio que os habitantes de povoados e cidades brasileiros próximos às terras indígenas alimentam por eles. É um preconceito profundo. Um desprezo racial e cultural que desmente todas as teorias do brasileiro cordial e da nossa cultura como resultado de contribuições das três raças formadoras.
O que existe mesmo é discriminação e apartheid, causadas por uma incompatibilidade profunda entre as duas concepções de mundo. Uma situação muito difícil de superar.
Uma pena que Darcy não esteja mais entre nós para fazer uma análise atual da situação dos índios brasileiros, apesar de sua introdução a última edição, em que ele comemora o crescimento da população indígena no Brasil, depois de décadas de queda populacional.
Talvez esteja na hora de fazermos como a Bolívia e proclamarmos o Brasil um Estado plurinacional, reconhecendo as dezenas de línguas faladas por eles, e hoje já adotadas no programa federal de educação indígena, e seu direito de ser diferentes, dentro desses territórios, antes que o agronegócio consiga romper os limites legais que ainda protegem as terras deles.
Um livro que todo brasileiro deveria ler, para entender essa questão fundamental da nossa sociedade.
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