domingo, 13 de janeiro de 2013

DESTAQUE

Um passeio pela pré-história nordestina
  
    Numa visita ao parque nacional da Serra da Capivara, no Piauí, em julho último, comprei um exemplar deste livro, de autoria de Gabriela Martin, com prefácio de Niéde Guidon.
     O livro, já na sua quarta edição, é publicado pela Editora Universitária, da Universidade Federal de Pernambuco e faz um passeio sobre os achados arqueológicos do nordeste brasileiro em oito capítulos:

     1) História da pré-história do nordeste brasileiro; neste primeiro capítulo a autora conta as notícias dos primeiros achados de pinturas rupestres pelos colonizadores portugueses, os mitos criados em torno de lendas de cidades perdidas e de possíveis conexões das pinturas e gravuras pré-históricas, como hieróglifos egípcios ou caracteres fenícios, e todo um imaginário que procurava ligar nossos primórdios com a antiguidade da civilização judaico-cristã, chegando até o início das escavações regulares, feitas com métodos científicos, já no século XX.

     2) Habitat e pré-história: o meio geográfico; a autora procura mostrar a relação entre o meio ambiente e a localização dos povos pré-históricos no que hoje é o território do nordeste brasileiro, procurando explicar, à partir de vestígios de animais e vegetais, qual era a flora e a fauna predominantes nas diversas regiões do nordeste e que importância essa relação com o ambiente tinha na localização dos sítios mutilizados pelos coletores e caçadores que habitaram esse enorme espaço geográfico, ao longo de milhares de anos. A predominância dos sítios está nos chamados boqueirões, que são bacias naturais que armazenam água da chuva, nas margens dos rios maiores e ao longo do litoral.
     Este capítulo mostra um mapa dos achados arqueológicos na região, destacando sempre que a pesquisa na região está em estágio inicial e que há áreas inteiras a serem trabalhadas, dentre elas a Chapada Diamantina:                                                                              Projetos de arqueologia pré-histórica desenvolvidos     
                                                                                                                                                            no  Nordeste do Brasil

     "A Chapada Diamantina, na Bahia, de forma tabular, divisor de águas entre rios que correm para o Atlântico e  os tributários do São Francisco, forma uma muralha com altitudes superiores aos mil metros, chegando a 2.100 metros no Pico das Almas. Região semi-deserta, apresenta-se prometedora para a investigação arqueológica pois já foram assinalados numerosos sítios pré-históricos, produto de prospecções rápidas e achados casuais. Com elevado índice pluviométrico, que pode chegar a 1.600 mm, a Chapada Diamantina possui florestas com árvores de grande porte que atualmente estão sendo devastadas pela extração de madeiras e plantio do café." p. 56

     3)A antiguidade do homem no nordeste do Brasil; netse capítulo são listados os sítios arqueológicos mais importantes e suas datações, que surpreendem pela antiguidade, como São Raimundo Nonato, no Piauí, com datações variando de 6150 a 48.000 anos, Bom Jardim, em Pernambuco, com datas até 9520 anos, Petrolândia, também em Pernambuco, de até 7.580 anos, Canindé do São Francisco, em Sergipe, com ocorrências de até 8.950 anos, Carnaúba dos Dantas, no Rio Grande do Norte, até 9.410 anos, Central, na Bahia, de até 9.390 anos, Santa Maria da Vitória, na Bahia, de até 6.520 anos e Coribe, na Bahia, quase divisa com Minas Gerais, com datações entre 8.860 e 43.000 anos.

     4) Áreas arqueológicas do Nordeste do Brasil; neste capítulo Gabriela Martin trabalha o conceito de área arqueológica, sua subdivisão em microrregiões e o conceito de enclave pré-histórico, detalhando os achados em alguns deles, como o Boqueirão da Pedra Furada, em São Raimundo Nonato e outros, frutos de operações de salvamento em áreas de alagamento por reservatórios de represas, como Itaparica, na Bahia e muitos outros. Seu relato impressiona pela quantidade imensa de achados, mesmo considerando que a prospecção arqueológica no nordeste está em estágio inicial. Quando se termina esta leitura, tomamos consciência de que estamos em cima de um verdadeiro tesouro inexplorado.

     5) Homo Faber: o desenvolvimento tecnológico do homem pré-histórico no nordeste do Brasil;

neste capítulo ficamos conhecendo os estágios de desenvolvimento da cerâmica e da chamada indústria lítica (trabalho em pedra), assim como trabalhos artesanais com ossos, conchas, cestaria e arte plumária do homem pré-histórico nordestino. Aí já surgem as primeiras divisões em tradições, e as primeiras hipóteses para explicar o povoamento da região. Uma dessas hipóteses, baseada na denominada tradição Itaparica (artefatos de pedra encontrados na operação
Implementos líticos polidos                                                                                                                                                Pontas de projétil de calcedônia e Silex
de salvamento do lago da represa de Itaparica, com resultados semelhantes em outras regiões do Brasil), formula a hipótese de que alguns povoadores da região teriam vindo do centro-oeste brasileiro, especialmente dos cerrados de Goiás, já que os artefatos encontrados lá, pertencentes a esta tradição, são mais antigos. Mas por enquanto isto não passa de uma hipótese e falta muita pesquisa de campo para que se possa reconstruir a trajetória dos nossos ancestrais.

     Também na cerâmica alguns resultados são surpreendentes. Peças mais antigas são mais elaboradas que as mais recentes, demonstrando que povos mais adiantados teriam sido sucedidos por outros mais atrasados, contrariando aqueles que acham que a história só anda pra frente e provando que em determinados momentos pode haver uma involução nas sociedades humanas. As principais tradições ceramistas do nordeste seriam a Tupiguarani e a Aratu.

Cerâmica da tradição tupi-guarani,                                                                                                                     Implementos para o tratamento da mandioca
                                                                                                                                                       
     6) O universo simbólico do homem pré-histórico nordestino; capítulo que trata da fantástica e abundante arte rupestre (sobre a pedra) no nordeste brasileiro. Os desenhos são impressionantes e Gabriela Martin nos brinda com as divisões em tradições, junto com todos os questionamentos científicos sobre essas mesmas divisões.


 Tradição nordeste. Cenas emblemáticas que sugerem ação cerimonial

       Os desenhos se dividem em grafismos (pinturas) e gravações, estas geralmente ocorrendo em pedras na beira de rios, conhecidas como Itaquatiaras, com destaque para a fantástica Pedra do Ingá, encontrada no meio do riacho do Ingá do Bacamarte, na Paraíba, coberta de petróglifos, com profundidade variando de 6 a 7 milímetros e largura de cerca de 3 cm.

     "...são centenas de lugares em todo o nordeste, com desenhos esquemáticos gravados nas pedras, de difícil filiação a determinado grupo étnico.
     É evidente que a maioria dos petróglifos ou itaquatiaras do nordeste do Brasil, estão relacionados com o culto das águas. Muitas dessas gravuras nos fazem pensar em cultos cosmogônicos, das forças da natureza e do firmamento. Possíveis representações de astros são frequentes, assim como a existência de linhas onduladas que parecem imitar o movimento das águas. É natural que nos sertões nordestinos, de terríveis estiagens, as fontes d'água fossem consideradas lugares sagrados, mas o significado dos petróglifos e o culto ao qual estavam destinados nos são desconhecidos." P. 292/293.

Gravuras da tradição Itaquatiara, Pedra do Ingá, Ingá do Bacamarte, Paraíba.     

   O que impressiona o observador leigo dessas representações, priuncipalmente as pinturas, é a sua capacidade de transmitir movimento e sentimento, apesar das técnicas rudimentares.

   7) A vida espiritual: o culto aos mortos; capítulo onde a autora descreve as diversas formas de enterramentos, as posições dos corpos, urnas funerárias e objetos que acompanhavam os rituais fúnebres, revelando valores e visões do pós-morte, das sociedades pré-históricas.

    8) O futuro da pré-história no nordeste; finalmente, neste capítulo a autora faz um apanhado geral do estágio dos trabalhos de prospecção arqueológica na região, seus principais contraditórios, e as políticas atuais em relação aos remanescentes indígenas. Neste ponto ela nos lembra que antes de Cabral não existiam índios, mas várias nações que depois foram homogeneizadas por este adjetivo do colonizador. Portanto o estudo dos povos que estavam aqui antes da chegada dos colonizadores, deve levar em conta a existência de várias etnias e culturas diversificadas, que ocuparam este território sucessivamente durante dezenas de milênios, período infinitamente mais longo a história que estudamos na escola.

Painel rupestre, São Raimundo Nonato, Piauí, datado entre 9 e 10 mil anos.

     Se você, leitor, se interessa pelo nosso passado remoto, abandone as especulações sensacionalistas sobre egípcios e fenícios na história do Brasil e mergulhe no que a ciência já nos traz, para explicar um pouco deste período, que só agora começamos a vislumbrar. Este livro talvez seja um primeiro passo na direção certa.

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