Lendo o livro ABC de Castro Alves, de Jorge Amado, me surpreendi com uma crítica dele a Machado de Assis.
Numa época em que Jorge Amado praticava uma literatura politicamente engajada, como neste livro publicado em 1941, ele critica Machado de Assis por não enxergar as causas sociais que tanto animaram a poesia de Castro Alves, no caso a abolição.
Acusa Machado de ser um arrivista, um "mestiço" que lutava pela aceitação da sociedade branca, ao invés de se aliar ao povo brasileiro, especialmente sua parcela mais explorada e massacrada, os escravos.
Faz um paralelo entre Machado de Assis e Tobias Barreto, o sergipano, colega de Castro Alves nas lutas políticas da faculdade de direito de Recife, então um berço das idéias republicanas e abolicionistas.
Tobias Barreto, assim como Machado de Assis, também é chamado de "mestiço" que preferia agradar a elite branca do que lutar pelos direitos dos negros, reduzidos à condição vil da escravidão.
Falando sobre a acolhida do Rio de Janeiro a Castro Alves, fala com entusiasmo de José de Alencar e do seu "indigenismo", que valorizava o índio, embora o mitificasse, transformando-o em herói. Segundo Jorge Amado, Alencar e Castro Alves defendiam os índios e os negros, enquanto Machado de Assis preferia ignorar essa realidade e se concentrar em dramas intimistas.
Hoje, esta postura de Jorge Amado seria considerada uma "patrulha ideológica".
Mas passado tantos anos desta crítica, mais de 70, a linguagem de José de Alencar ficou ultrapassada, considerada excessivamente romântica, idealizadora de uma realidade dos índios que está muito distante de sua realidade. E a poesia de Castro Alves, quem a conhece hoje em dia? Claro que alguns poemas se tornaram emblemáticos, como O navio negreiro, mas o restante de sua obra ficou ultrapassada, devido ao excessivo romantismo e à linguagem rebuscada, típica do século XIX.
Quanto à Machado de Assis, sua obra permaneceu e se torna cada dia mais atual, por que trata de temas humanos universais, com suas ironias sobre a mesquinharia das existências sem sentido, a futilidade das elites do tempo da monarquia, a traição e a infidelidade, a incapacidade do ser humano em se superar, o desprezo pelo potencial das mulheres numa sociedade machista.
Nada como o tempo para colocar à prova uma crítica. A proposta de literatura engajada de Jorge Amado, abandonada por ele mesmo depois de alguns anos da publicação do ABC, mostra que os temas universais são os duradouros e a literatura engajada, passa, na medida em que as causas que ela defende ficam para trás.
O que nos resta de Castro Alves é sua coragem, sua liberdade de enfrentar a decadência do Império, descortinando outro futuro para o Brasil. O que nos resta dele é sua liderança política, além da beleza de sua própria história de destemor e romantismo.
O legado de José de Alencar é a descrição épica do desbravamento das terras cearenses e a história da fundação de Fortaleza, consagradas nas páginas de Iracema. Mas sua visão dos índios está completamente superada.
Interessante, também, no ABC, de Jorge Amado, é a crítica que ele faz à sociedade de Salvador no século XIX, quando os poetas locais, tomados de ciúme pelo sucesso de Castro Alves, o condenam a um ostracismo que o joga em grande depressão, justamente no momento em que ele perde seu pai e seu irmão, só vindo a reconhecê-lo depois, quando Rio e São Paulo já o haviam consagrado.
Esta é uma característica que permanece na Salvador de hoje, incapaz de assumir a liderança cultural, seja nas artes, na política ou na ciência, presa a um provincianismo que leva seus intelectuais a se fecharem em pequenos grupos, que parecem ser incapazes de iniciativas que rompam com o status quo, não reconhecendo seus melhores valores, quando eles surgem, ficando sempre à reboque dos grandes centros do sudeste.
A arte, assim como a ciência e o pensamento em geral, exigem ousadia. São desafios a serem vencidos, pelos que se propõe a enveredar pelos caminhos da criação. Ninguém avança pela via do conservadorismo e dos interesses mesquinhos de pequenos grupos, seja no século XIX ou no XXI.
Se Machado de Assis e Shakespeare conseguem ser contemporâneos, tantos anos depois de sua passagem pela terra, é porque passaram ao largo das patrulhas, acreditaram em si próprios e souberam abrir novos caminhos.
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