segunda-feira, 6 de maio de 2013

DESTAQUE

Romanceiro da Inconfidência

     Completando minhas leituras sobre a Inconfidência Mineira, despertadas pela minha recente visita a Ouro Preto, acabo de ler o Romanceiro da Inconfidência de Cecília Meireles, na pequena edição de bolso da L&PM (Porto Alegre, 2012), com o texto integral e, confesso, não sei como fazer a resenha de um livro destes.
     Depois de visitar o Museu da Inconfidência e a cidade onde tudo aconteceu, e de ter lido os livros; História da Inconfidência de Minas Gerais e O amor infeliz de Marília e Dirceu, ambos de Augusto de Lima Junior, além de Chico Rei, de Agripa Vasconcelos, eu estava pronto para ler este último, escrito em um gênero incomum no Brasil, a poesia narrativa, pois Cecília visita cada episódio que marcou tantas vidas no final do século XVIII e definiu os destinos do Brasil e, para quem conhece os fatos, os poemas em que ela vai desfilando toda a tragédia que envolveu aqueles acontecimentos, dão às explicações dos historiadores uma dimensão humana inigualável.
     Lançado em 1953, depois de 10 anos de pesquisas, fruto de um esforço intelectual e poético espetacular, o Romanceiro nos leva a reviver a vida e a morte de tantos personagens, fidalgos e gente comum, escravos, e rainhas, delatores e heróis, vilões e idealistas.
     De tantos poemas, divididos em "falas", "romances" e "cenários" selecionei um para apresentar neste espaço tão curto;

Romance XXI ou Das Idéias
A vastidão desses campos
A alta muralha das serras
As lavras inchadas de ouro.
Os diamantes entre as pedras.
Negros, índios e mulatos.
Almocafres e gamelas.
Os rios todos revirados.
Toda revirada a terra.
Capitães, governadores,
padres, intendentes, poetas.
Carros, liteiras douradas, cavalos de crina aberta.
A água a transbordar das fontes.
Altares cheios de velas.
Cavalhadas, luminárias.
Sinos. Procissões. Promessas.
Anjos e santos nascendo
em mãos de gangrena e lepra.
Finas músicas broslando
as alfaias das capelas.
Todos os sonhos barrocos
deslizando pelas pedras.
Pátios de seixos. Escadas.
Boticas. Pontes. Conversas.
Gente que chega e que passa.
E as ideias.
Amplas casas. Longos muros.
Vida de sombras inquietas.
Pelos cantos das alcovas,
histerias de donzelas.
Lamparinas, oratórios,
bálsamos, pílulas, rezas.
Orgulhosos sobrenomes.
Intrincada parentela.
No batuque das mulatas,
a prosápia degenera:
pelas portas dos fidalgos,
na lã das noites secretas,
meninos recém-nascidos
como mendigos esperam.
Bastardias. Desavenças.
Emboscadas pela treva.
Sesmarias. Salteadores.
Emaranhadas invejas.
O clero. A nobreza. O povo.
E as ideias.
E as mobílias de cabiúna.
E as cortinas amarelas.
D. José. D. Maria.
Fogos. mascarados. Festas.
Nascimentos. Batizados.
Palavras que se interpretam
nos discursos, nas saúdes...
Visitas. Sermões de exéquias.
Os estudantes que partem.
Os doutores que regressam.
(Em redor das grandes luzes,
há sempre sombras perversas.
Sinistros corvos espreitam
pelas douradas janelas.)
E há mocidade! E há prestígio.
E as ideias.
Negras de peitos robustos
que os claros meninos cevam.
Arapongas, papagaios,
passarinhos da floresta.
Essa lassidão do tempo
entre embaúbas, quaresmas,
cana, milho, bananeiras
e a brisa que o riacho encrespa.
Os rumores familiares
que a lenta vida atravessam:
elefantíases, partos;
sarna; torceduras; quedas;
sezões; picadas de cobras;
sarampos e erisipelas...
Candombeiros. Feiticeiros.
Unguentos. Emplastos. Ervas.
Senzalas. Tronco. Chibata.
Congos, Angolas. Benguelas.
Ó imenso tumulto humano!
E as ideias.
Banquetes. Gamão. Notícias.
Livros. Gazetas. Querelas.
Alvarás. Decretos. Cartas.
A Europa a ferver em guerras.
Portugal todo de luto:
triste Rainha o governa!
Ouro! Ouro! Pedem mais ouro!
E sugestões indiscretas:
Tão longe o tronco se encontra!
Quem no Brasil o tivera!
Ah, se D. José II
põe a coroa na testa!
Uns poucos de americanos,
por umas praias desertas,
já libertaram seu povo
da prepotente Inglaterra!
Washington. Jefferson, Franklin.
(Palpita a noite repleta
de fantasmas e presságios...)
E as ideias.
Doces invenções da Arcádia!
Delicada primavera:
pastoras, sonetos, liras
- entre as ameaças austeras
de mais impostos e taxas
que uns protelam e outros negam.
Casamentos impossíveis.
Calúnias. Sátiras. Essa
paixão da mediocridade
que na sombra se exaspera.
E os versos de asas douradas,
que amor trazem e amor levam...
Anarda. Nise. Marília...
As verdades e as quimeras.
Outras leis, outras pessoas.
Novo mundo que começa.
Nova raça. Outro destino.
Plano de melhores eras.
E os inimigos atentos,
que, de olhos sinistros, velam.
E os aleives. E as denúncias.
E as ideias.

     É, sem dúvida, um dos livros mais bonitos que já li. Realmente uma pérola da literatura brasileira.
      Leiam!


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